Leque angolense de leituras literárias


A partir destes nossos bibliófilos e escritores (v. Três bibliotecas importantes no último quartel do século XIX, Três poetas no rio Quanza e Pedro Félix Machado), é possível extrairmos também muitas informações sobre leituras em Angola no século XIX. Algumas das extrações, de resto, foram já feitas. Acordando o que disse atrás, a “bela livraria” (Matta, 2001 pp. 12, 11) de Cordeiro da Mata no Dondo “causava admiração aos contemporâneos” («Delírios», 1889). Por seu turno, as bibliotecas de Alfredo Troni e de Joaquim Eugénio de Salles Ferreira deixaram rasto da sua amplidão na Biblioteca Municipal de Luanda, hoje Biblioteca do Governo Provincial. Encontramo-nos, portanto, perante escritores, leitores e professores cultos, com razoável e atualizada bibliografia nas suas casas e nas dos amigos, que tiveram por isso condições para fazer escolhas estéticas informadas no seu tempo. Qual o significado das informações que podemos obter sobre o que leram?

Em primeiro lugar, elas serão significativas porque estamos justamente a querer saber a que títulos acederam, para melhor enquadrarmos a produção literária, conhecermos o alcance das preferências técnicas e tentarmos entender porque foram essas e não outras. Creio ser hoje pacífico, para quem fez (ou tentou fazer) um mínimo que seja de leituras em psicologia, que as influências da fase de formação dos escritores são decisivas para ulteriores desenvolvimentos e estruturas artísticas por eles trabalhadas. É quase uma banalidade, seria mesmo uma banalidade caso não nos esquecêssemos disso quando abordamos criticamente as obras dos nossos escritores. As obras valem por si próprias, a partir delas é que redescobrimos o seu mundo e o nosso. Mas, a partir dos livros lidos pelos seus autores, entendemos melhor a formulação e o sentido da formulação das obras artísticas, ainda mais no contexto rarefeito, complexo e tenso que era o da colónia de Angola no século XIX.

Uma das pedras de toque de um crítico fundamental para o século XIX português e lusófono foi precisamente essa. Trata-se de um crítico lido entre nós no seu século, A. P. Lopes de Mendonça, e do qual, por isso, falarei neste livro. Por um lado, ele chama a atenção para as influências que tornaram possíveis obras nacionais e nacionalistas portuguesas, como as de Almeida Garrett e de Alexandre Herculano. Por outro, faz-nos observar que os imperadores e reis-mecenas, a quem foram atribuídas responsabilidades por um grande florescimento artístico, beneficiaram da existência de grandes artistas que se formaram como tal antes de eles reinarem: “a sua educação literária estava já completa” (Mendonça, 1855 p. 20). Se a criação de condições favoráveis à criatividade é indispensável para o florescimento artístico de uma comunidade, entre as quais Lopes de Mendonça destaca a da liberdade, o que se tornou decisivo para o aparecimento dos grandes escritores foi o que leram quando estavam a amadurecer e algumas leituras posteriores. É por isso que fiz todo o esforço investigativo que resultou no presente livro e me concentrei naquela bibliografia que estava disponível enquanto cresciam os poetas da segunda metade do século, incluindo um pouco antes e um pouco depois.

Os artistas da palavra, quase sempre, lêem mais do que os restantes leitores, ou lêem livros que os outros não leram, ou lêem-nos observando aspetos que mais ninguém valoriza nem flagra. Torna-se, portanto, necessário verificar a sua inserção nas outras comunidades e na globalização literárias. Isso nos mostrará também se esses poetas emergiam do seu meio ou lhe eram estranhos. Ou seja, se contribuíram para o meio reforçando o que já se conhecia nele ou trazendo-lhe contribuições diversas.

Cordeiro da Mata e o ambiente literário angolense

O leque de amizades intelectuais angolenses de Cordeiro da Mata era vasto, incluindo figuras gradas do jornalismo local, como Carlos da Silva, que também residiu nas “margens do Kwanza” e a pedido de quem escreveu o poema «Saudação», dedicado “À Sociedade Dramática «Perseverança»”, que não chegou a ser fundada no Dondo. Sabe-se (por um artigo do mesmo Carlos da Silva) que, entre os seus amigos, discutia-se a independência de Angola.

Um dos biógrafos de Cordeiro da Mata foi Mamede de Sant’ana e Palma (Mamede Afonso Ferreira de Santana e Palma), como já referi. Era um membro de famílias com as quais a do poeta se misturou e com uma das filiações (Palma) remetendo para origens italianas (ou, precisamente, napolitanas), as mesmas de Geraldo António Victor e de Geraldo Bessa Victor. 

Mamede de Sant’ana e Palma viveu em Luanda, Alto Dande (onde foi Fiel da Estação Postal e Escrivão da Administração do Concelho, sendo exonerado a 22.8.1896)[1] e Huíla, onde foi “amanuense de 2.ª classe na repartição de fazenda”[2]. Sant’Anna e Palma era proprietário-editor de O desastre, no qual publicou veemente reação contra o tristemente famoso discurso do Deputado português Dantas Baracho (st, 1893). Dantas Baracho era truculento, instável (começou monárquico, aderiu aos republicanos pouco antes da República e terminou desiludido e afastado da política partidária), para além de imprevidente político e preconceituoso (como quase todos no seu tempo). Ele fez parte da Comissão de delimitação das fronteiras com o Congo Belga (1891-1892), de que deixou relatório e livro publicado, originando-se aí, como nos defeitos pessoais, a polémica e o discurso ofensivo da nossa dignidade que veio a proferir. Mamede de Sant’Anna e Palma, que talvez fosse também truculento, a julgar por alguns artigos seus, atacou frontalmente o português, mas invetivando por igual os africanos instalados em Lisboa e Luanda, que não reagiram ao preconceituoso discurso. Referia-se, entre outros, ao Dr. Carlos Tavares (nascido no Egito-praia, província de Benguela) e Joaquim Matoso da Câmara (ainda familiar de Maia Ferreira). Essa crítica me pareceu precipitada ou injusta. Os filhos da terra, bem colocados na corte lisboeta (lembre-se que o lente Carlos Tavares era médico da Real Câmara, apadrinhado por D. Carlos I), nessa altura, terão atuado nos bastidores e com eficácia. Enquanto jornalista, os textos de Mamede de Sant’Anna e Palma sofrem de uma forte componente emotiva e impulsiva, chegando às vezes a ser violentos – o que pressupõe um romantismo exaltado ainda e um perfil psicológico próximo do de Dantas Baracho – excetuado o preconceito racial.

O biógrafo e jornalista foi também professor interino da escola do sexo masculino da Muxima, nomeado a 14.9.1878, convocado nessa altura para prestar provas de habilitação pedagógica em Luanda (pela data, já avaliado por Miranda Henriques e Joaquim Eugénio de Salles Ferreira). Prestou-as e foi aprovado, exonerando-se a 28.1.1879 para começar a lecionar no Calumbo, de onde saiu em 5.11.1880 e não sei para onde. Sei que chegou a ser ainda professor interino (caso se trate da mesma pessoa) na escola masculina da Chibia, em substituição do titular, impedido momentaneamente. 

Sant’Anna e Palma ligou-se também, como era comum nessa rede familiar, a chefias tradicionais, tendo sido secretário de Soba (notícia relativamente à qual perdi a referência da fonte). Um seu familiar, Domingos Ferreira de Sant’Anna e Palma, capitão de 2.ª linha, foi Chefe interino do Concelho de Calumbo, pelo menos em 1864-1865[3]; deve ter chefiado o Calumbo durante pouco tempo, uma vez que apareceu como chefe do Concelho de Zenza do Golungo, várias vezes, no Boletim oficial de 1865[4]. Ainda chegou a ser nomeado, pelo Governador interino, subdelegado do julgado de Massangano[5]. Outro provável familiar dava pelo nome de Afonso Ferreira de Santana e Palma, exercendo a função de professor primário, no âmbito da qual fundou, com outros professores, a Associação Literária e Recreativa de Luanda em 1876 (Santos, 1973 p. 164). Mas, em outra referência, vejo escrito Mamede Afonso, portanto julgo tratar-se do próprio jornalista. Homem ocupado em diversos cargos e funções, ele não desenvolveu a veia poética, para a qual teria talvez inclinação, mas enquanto jornalista fez parte do leque de leituras angolenses de Cordeiro da Mata.

O seu berço social estava, portanto, na mesma luta por margem de manobra que Maia Ferreira, Joaquim Luiz Bastos, José de Fontes Pereira, Geraldo Victor, ou Cordeiro da Mata - embora cada um remexendo em águas diferentes, acessando as mesmas redes de interesses, por vezes em ramos divergentes. Cada um partia de uma situação financeira diferente, menos favorecidos uns que outros, mas todos enfrentavam o recuo dos filhos da terra sob o impiedoso e brutal empurrão do novo colonialismo. O seu raio social e antropológico de ação interseccionava as comunidades urbanas coloniais articulando-as intermitentemente (mas não sem propósito) com chefias tradicionais e, quando possível (e sobretudo na primeira metade do século), com portugueses bem colocados ou simplesmente aclimatados. A estratégia de defesa desta margem do “povo das margens” (Santos, 2010) acabou sendo a estratégia determinante na luta nacionalista, contra o colonialismo, e aflorava já, também com intermitências, nos discursos de alguns dos vultos mais destacados da comunidade crioula de Luanda, como bem demonstrou Mário António em A formação da literatura angolana. Com o advento da República em Portugal, por exemplo, a defesa da extensão da escolarização a todos os ‘indígenas’, que vinha já deste mesmo século XIX mas se tornou cada vez mais imperiosa, era ainda a mesma estratégia de aliança com os povos do interior para conquistar espaço de manobra e, posteriormente, o poder – como veio a suceder.

Levando em conta os aspetos acima expostos, é fácil compreender a biografia entusiasmada, exaltante, impressionista que Sant’Anna e Palma fez de Cordeiro da Mata, com uma linguagem recheada de exclamações. Cordeiro da Mata era bem o poeta do seu meio e da sua estratégia. Para além do labor intelectual que o distinguiu, seria sempre elogiado pela identificação que Sant’Anna e Palma sentia com ele, de resto uma identificação natural.

Biógrafo sucinto e sóbrio do nosso poeta e etnógrafo, também seu amigo, o mais importante de todos, foi o cónego António José do Nascimento (1835-1902), já acima referido e que abrirá com texto próprio o famoso Voz de Angola clamando no deserto, publicado em Luanda em 1901. É conhecida a biografia deste religioso e professor, uma figura patronímica da sociedade urbana angolense, bem retratada por Mário António. Por isso apenas a resumo:

Veio à luz do mundo em Luanda, no dia 13 de maio de 1835, segundo os dados que possuo e que não coincidem com a Historia geral da África, onde há mais datas de nascimento não coincidentes (AAVV, 2010 p. 819). 1835 foi o ano de nascimento de Júlio César Machado – um escritor lido por Cordeiro da Mata – e do famoso General Giraldo António Victor. Li que fez o Curso Geral dos Liceus (pelo que suponho que terá estudado em Portugal ou no Brasil) e o “curso teológico dos seminários” (Santos, 1973 p. 145). Mário António informa-nos que, beneficiando de uma bolsa do “Cofre Central da Bula da Cruzada”, estudou no Seminário Patriarcal de Santarém, onde se ordenou. Chegou a Cónego da Sé de Luanda em 1864, tendo sido Pároco em várias freguesias, incluindo em São José (Cabíri, Icolo e Bengo), eventualmente Dondo e Massangano também. Teve uma carreira docente longa, distribuída por várias freguesias onde foi Pároco e até na Escola adstrita ao Batalhão de Caçadores n.º 3, no Seminário diocesano e na própria estrutura do ensino eclesiástico e público, na qual desempenhou ainda a função de Secretário do Conselho da Instrução Pública e membro do Júri para exames pedagógicos aos professores. Ensinou as disciplinas de Português e de Latim, História Pátria e Universal, Filosofia e Matemática e Educação Física. O Governador José Maria da Ponte e Horta, muito pouco simpático para com os filhos da terra, acusava-o de ser independentista (por um artigo publicado em O mercantil, que o Governador mandou encerrar) e de viver “amancebado”. Faleceu a 7 de julho de 1902, apesar das acusações com garbo e renome. A breve biografia (de Cordeiro da Mata) que nos deixou, sob forma de notas despretensiosas, revela, como o escrito posto em Voz de Angola clamando no deserto, um retórico ponderado e uma pessoa firme, ciente da sua dignidade e posição, para além de bom observador dos caracteres humanos. Mas, sobretudo, revela o que podia ter sido um escritor sucinto, desse tipo – raro entre nós – que diz muito com poucas e simples palavras.

A filiação intelectual angolense de Cordeiro da Mata incluía também os nomes patrológicos de Joaquim António de Carvalho e Menezes, a quem chamava de “compatriota” (o que é significativo, dado o combate de Carvalho e Menezes contra o colonialismo português), como de José de Fontes Pereira, a propósito do qual afirma a necessidade de se fazer um “Album ou Galeria dos homens illustres de Angola, principalmente dos nossos conterraneos, para não desconhecermos a sua biographia, como ignoramos a de muitos angolenses que foram distinctos”. Esse “Album ou Galeria” ele ainda esboçou e fazia parte da sua conceção do combate pela defesa, afirmação e, até, libertação da comunidade intermédia situada em Luanda e nos seus extensos arredores até Malange. Cordeiro da Mata parece ter concebido essa luta, não só como luta pela manutenção de um status, mas já como luta nacional, integradora, revitalizadora dos constituintes locais e informada, participante na cultura que se globalizava. O combate era, por consequência, também ele multifacetado, inclusivo, abrangente a vários níveis, assente sobretudo na constituição de um património cultural angolano, rural e urbano, oral e escrito, que superasse as divergências, os conflitos internos e nos diferenciasse no seio da comunidade internacional como nação, coletividade humana com personalidade própria, comum a todos os seus membros. Por isso era preciso estudar as figuras patrológicas e cuja atuação estava já inscrita no circuito da escrita, fixada em letra de forma, sancionada por iniciativas e regulações (artigos escritos, iniciativas relatadas – em periódicos por exemplo – nomeações e documentação publicadas em Boletim oficial, etc.). Essas figuras estariam também registadas no âmbito oral, mais alargado mas de precária, dinâmica e oscilante memória. Para a futura nação tornava-se necessário biografar essas personalidades, que funcionassem como paradigmas fundadores, ou como emblemas de uma ética nacional.  

Nunca por ele nomeado, mas seguramente lido, foi José da Silva Maia Ferreira. Nos Delírios podemos fazer uma exploração sistemática das intertextualizações, por vezes irónicas, que ligam os dois poetas. Aqui deixo alguns sinais, a título de sugestão.

Em primeiro lugar é de realçar que ambos partilharam motivos e tópicos do romantismo e do ultrarromantismo. Daí títulos parecidos (como ‘revelação’ e ‘num álbum de’), algumas imagens muito próximas (a figura do ‘anjo’, a ‘saudade’, as da evocação de ambientes familiares, as do motivo da criança, ou do menino, ou da menina, do tópico dos olhos e da distopia da mulher falsa, fingida, interesseira), algum vocabulário, mesmo o antiquado, relacionado com arcaísmos e clichés da época (‘mui’, ‘grão’, ‘suspirar’ e ‘gemer’, ‘decantar’ na ‘pobre lira’, ‘magia’-‘magos’, ‘gozos’, ‘mimosa’, ‘fulgor’, ‘divinos’ e ‘divinais’, etc.) e até soluções estróficas (por exemplo alternâncias, dentro do poema, entre estrofes de versos longos e curtos – por vezes quebrados; ritmos semelhantes; inversões frásicas – enfim, estruturas e soluções formais idênticas ou, mesmo, iguais).

Uma estrutura vinda de V. Hugo, muito explorada por Maia Ferreira nas Espontaneidades, figura na p. 53 dos Delírios, incluindo um primeiro verso quase igual ao de Maia Ferreira, mas tentando corrigir-lhe o arcaísmo e açucarar o léxico, embora enfraquecendo-lhe o vigor rítmico:

Se eu fora o grão vate de Argiva potente (Ferreira, 2002 p. 43)

Se eu fora um grande vate, em doces cantos (Matta, 2001 p. 53)

Maia Ferreira fala depois (v. 4) nos “magos encantos” dela e Cordeiro da Mata nos “mil encantos” (v. 3). Ambos os poetas ainda em mais páginas interseccionaram com esta estrutura, que marcou mais Maia Ferreira mas não deixou de mexer com o poeta do Quanza. Entre as pp. 77 e 80 dos Delírios há dois poemas em que essa é a grelha subliminar à qual se sobrepõem conteúdos irónicos (no primeiro caso relativo a uma figura masculina um tanto ridícula, no segundo relativo à “mulher” em geral). A ironia acentua a distância face à matriz romântica da estrutura poética citada, mas assinala assim mesmo a sua presença, tanto quanto o começo da sua superação.

Outra comparação produtiva pode ser feita ligando os poemas «A uns olhos que eu vi» (Ferreira, 2002 pp. 127-128) e «A uns certos olhos» (Matta, 2001 p. 55). Os olhos de que falou Maia Ferreira eram “pretos-maviosos”; os de Cordeiro da Mata eram “duma Cabinda”. Os que viu Maia Ferreira eram “lânguidos-mimosos”, os que viu Cordeiro da Mata eram “tão mimosos”. Ambos eram “divinais” ou “divinos”. Os de Cordeiro da Mata “tinham tal brilho e magia / que cegavam, radiosos!...”; os de Maia Ferreira “como nenhuns fulguravam […] no seu brilho”. Se os de Cordeiro da Mata irradiavam “magia”, os de Maia Ferreira tinham “maga, doce expressão”, inspirando a mesma “meiga, terna paixão” que os “meigos, p’regrinos” olhos que viu o poeta do Quanza. Os que enfeitiçaram Maia Ferreira (“seu olhar enfeitiçava”), “cegavam” Cordeiro da Mata. Aqueles “infiltravam / os amores que eu senti”, enquanto destes “senti n’alma a poesia / e no peito infindos gozos!...” a tal ponto que, para Maia Ferreira, mais “nenhuns fulguravam”, porque “na terra não vi iguais” e, para Cordeiro da Mata “como aqueles não vi inda”.

Na última estrofe de outro poema (Matta, 2001 p. 61), igualmente centrado nos olhos (africanos, mas não assumidamente) da amada, sobretudo na primeira parte da estrofe, o poeta parece refazer versos ou expressões de Maia Ferreira. Notável, no resto do poema, a diferença com os olhos retratados pelo poeta de Luanda, pois Cordeiro da Mata, aí, não nos diz, explicitamente, a cor dos olhos – ao contrário do comum em Maia Ferreira e no seu tempo. Ainda assim, encontramos por uma vez um procedimento muito parecido no luandense.

Estas e outras passagens nos dão conta da continuidade da lírica angolana durante o século XIX, ao mesmo tempo que da sua transformação por dentro, podendo a poesia de Cordeiro da Mata ser lida, em variados momentos, como resposta à do seu antecessor no trono urbano do verso escrito...

Mas não só isto há a dizer sobre intertextualizações de e com a lírica de Cordeiro da Mata. Certos poemas espalhados pelos Delírios, em que o poeta faz retratos críticos, por vezes cáusticos, de tipos sociais[6], evocam-nos os Sorrisos e desalentos de Pedro Félix Machado (além de alguns poemas de J. Cândido Furtado), colocando Cordeiro da Mata na transição entre um romantismo que ainda o marca profundamente e o que estava para vir em seguida, ou já convivia com ele, como é caso do parnasianismo de Félix Machado. Por influência do meio, traz ainda algumas extemporâneas referências clássicas e renascentistas, apagadas da poesia de Maia Ferreira e da de Félix Machado: Zéfiro, Júpiter, Sémele, Lucrécia, Vénus, Tântalo, José Maria da Costa e Silva (tradutor de Homero e Apolónio de Rhodes) – mais, claro, Cupido e Baco. De onde vieram elas? Dos livros de que falámos atrás e que circularam por Angola, seguramente, no meio dos oitocentos. Entre eles os de Bocage e os enviados para o sistema de ensino orientado pela Igreja.

 

Relação plausível com as oraturas locais

Essas algumas das referências literárias angolanas, a par das que nos trazia a vida numa zona de fala e cultura predominante Quimbundu (escrevemos hoje Kimbundu, mas a tradição ortográfica da língua portuguesa me parece que deve ser aplicada quando usamos essa língua, tal como se aplica a norma ortográfica das línguas bantos quando nelas se incorporam palavras de origem portuguesa). Importa, já, deixar claro que não havia dois ‘blocos’ que se combatiam, nem sequer que se misturavam ou que se diluiam como se puséssemos algum liquidificador a funcionar. A oratura de predominância quimbundo era rica de outras contribuições também, pois não vivia isolada, mas em rede e o comércio era intenso em muitas zonas de sua influência. Vivia, também, em rede com oraturas bantos vizinhas (sobretudo kicongo e lunda-chocue, ou quicongo e lunda-cokwe). Em rede, igualmente, com a oratura dos colonos e pombeiros (muitos – colonos e pombeiros – analfabetos ou com fraco índice de literacia), particularmente aqueles que mais se embrenhavam e diluíam e, sendo colonos, se africanizavam nas comunidades de fala e cultura quimbundo, negociando, aprendendo e praticando a língua, casando, acompanhando filhos e filhas, participando da vida social – o suficiente para haver uma figura mitológica e espiritual chamada Sandú, que pode estar representando a sua existência.

A convivência do povo de fala dominante quimbundo com o de fala dominante portuguesa, ou com os bilingues, que eram muitos de ambas as línguas, rendeu menos do que podia na literatura da época, atuando eventualmente a um nível mais profundo, menos visível, mas estruturante.

Por um lado, o propósito de recolha das tradições, mesmo com intuito nacionalista ou regionalista, era promovido por intelectuais que se achavam distanciados dessas mesmas tradições, ou que vincavam por algum motivo tais distâncias em momentos muito bem escolhidos, vivendo na ambiguidade entre se mostrarem ‘civilizados’ e se mostrarem ‘nativos’. Muitas vezes eles fariam questão de marcar o distanciamento, não só para não sofrerem as consequências de uma conotação com ‘os indígenas’, ou com veleidades nacionalistas, mas mesmo porque o etnógrafo, fazendo recolhas, se colocava já canonicamente fora da cultura que recolhia, se imaginava a partir de um ponto de focagem miticamente neutro (‘científico’) e, portanto, exterior – esse era o sinal (ou o tópico…) da sua cientificidade na época.

No caso, específico, de Cordeiro da Mata, há nítida preocupação em veicular conteúdos locais, alguns associados a hábitos e costumes luandenses, ou da terra em volta. Mas a marca literária mais evidente vem-lhe pelo uso do quim­bundo em rima e convivência com o português. Esse uso é notório e codificado. Se se narra um episódio em que entra o poeta, o sujeito da enunciação fala em português e a personagem feminina em língua local. Um código não exclusivamente seu, mas comum à sua geração, verificando-se em Eduardo Neves e Cruz Toulson – talvez este o iniciador da série, porém lhe desconheço outras produções.

Além do bilinguismo poético, a sinalização de uma angolanidade por relação com a oralidade explorava diferenças da variante angolana face à portuguesa, diferenças que nos aproximavam do português do Brasil. Há pequenos e aparentes deslizes que denotam essa variação, como é o caso da colocação do pronome reflexo no final da «Revelação» de Cordeiro da Mata. Dá-se, prudentemente, uma repetição de conjugações reflexas antes (“abre-me”, “render-te”), como que justificando a final (“rendeu-se”), formando as três uma anáfora. Atente-se ao conjunto da estrofe derradeira:


Abre-me o céu, por Deus!
 
Eu desejo aos pés teus 
 
Render-te um culto ardente, 
 
Que nunca neste mundo 
 
Rendeu-se a nenhum ente!...

A anáfora sintática mantém-se graças a uma colocação própria da variante brasileira, nisso coincidindo com a nossa, pois o comum na portuguesa seria escrever, em tal contexto frásico, “se rendeu a nenhum ente”.

Outra composição dá sinal da mesma variante, sendo que a deslocação só se justificaria pela métrica (Matta, 2001 p. 117):

Oh descoco, 
Oh audácia, 
onde viu-se
Tal filáucia!  

- num final de poema (secção IV) formalmente audacioso, que emparelha com pouquíssimas composições dos Delírios.

Num aspeto mais profundo e estruturante, o legado oral contribuiu para aproximar o nosso poeta do Romantismo, popular ainda no seu tempo em vastas zonas do espaço lusófono, onde a maioria das superações líricas do Romantismo eram tomadas por extravagâncias. Prende-se, tal aspeto, com o facto de, na oralidade, os textos artísticos dispensarem sugestões que levem o leitor a imaginar a que episódio concreto se reporta a performance narrativa no seu contexto imediato. Na oralidade, o texto se reproduz em contextos específicos e perante um público familiar, onde todos percebem o ‘recado’ que o poema, ou conto, ou canto, leva à comunidade no momento e que, por isso, o justifica no meio que, por ser o mesmo, não precisa de representar a sua enunciação, não tem necessidade de encená-la literariamente. Esse contexto, uma espécie de segredo partilhado, implícito, é que torna vibrantes as palavras, mesmo quando elas o não são muito na rede meramente escrita. O texto, por tanto, não constrói nem sugere o contexto no qual está inserido e funciona. Se, porém, circulasse escrito, para comunidades distantes, ele precisava de sugerir um contexto que fizesse funcionar as palavras de maneira aproximada ao funcionamento na oralidade. Agora imagine-se um poema que se pensa para ser lido ou dito (num salão, numa cerimónia, a propósito de um acontecimento conhecido localmente, numa festa, num convívio, ou num namoro), e depois passa a escrito. Feito para ser lido ali, não precisava de nomear o contexto (embora pudesse fazê-lo por conveniência retórica), mas, escrito para se espalhar por um público indeterminado, obriga a indicar o contexto que o motivou e lhe condicionou a feitura. Isso nos faz imaginar a situação enunciativa que torna o poema significativo por ligação que se faz a um tipo, funcionando o cenário enunciativo como nomeação de contextos-tipo que o leitor encontraria no seu quotidiano.

Ora, o Romantismo – e muito mais o Ultrarromantismo lusófono – usou e abusou dos poemas particulares, ou contextuais, ou circunstanciais. A poesia, concebida como autobiografia por fragmentos, viu-se mesmo reduzida aos pormenores particulares e sem interesse nenhum fora de um círculo pessoal estrito. Para que os seus textos funcionassem, os poetas viam-se obrigados, para compensar, a inserir dedicatórias, epígrafes e localizações (no tempo, no espaço e na vida social), ou seja, paratextos, que vinham colorir a leitura sugerindo uma situação específica e típica (parece contraditório, não é?) na qual as palavras adquiriam tonalidades mais intensas. A prática era anterior, os barrocos abusaram também dela – dedicando-se porém a pormenores de outras vidas. Os ultrarromânticos, entretanto, reduzindo-se a sua lírica a particularidades biográficas mal conhecidas pelo público leitor, haviam de recorrer aos mesmos paratextos com particular incidência na montagem dos cenários enunciativos específicos. Na maioria dos casos, só por si a leitura de muitos poemas ultrarromânticos não seria suficientemente interessante e pela mesma razão os esquecemos hoje, quando não estamos já dispostos a imaginar esses contextos que deixaram de existir, ou que deixámos de frequentar. O recurso, exterior mas usual no ultrarromantismo lusófono, permite aos nossos poetas organizar um texto para a oralidade e transcrevê-lo sem o alterar, apenas acrescentando-lhes um contexto enunciativo (que não tinha de ser real). Pelo contexto se traz, então, uma localização africana, angolana, luandense, uma urbanidade local (às vezes sem localizador explícito) para a circulação escrita da poesia. É o que se faz usando por título «N’um Batuque», título cuja funcionalidade é a mesma de “No aniversário da minha filha *** que […] ”. Nisso, a tendência de românticos e, sobretudo, ultrarromânticos, para se dedicarem à divulgação de poemas circunstanciais, obrigando-os a nomear a circuntância para o leitor se comover imaginando-a, veio a ser extremamente útil aos versejadores e poetas que circulavam nos salões e quintais da Luanda do século XIX. Porque ela permitiu, como disse, transpor para a escrita, com carimbo de admissível, os versos feitos a pensar na oralidade quotidiana.

Uma última ‘ponte’ foi também feita pelo poeta do Quanza com as culturas tradicionais. Nestas, os géneros de sabedoria, os jogos de adivinhação, que deslindavam ligações ‘ocultas’ dentro do sistema linguístico e treinavam o raciocínio analógico, destacavam-se desde cedo. Eram fundamentais na educação das crianças, na preservação dos significados próprios e antigos das palavras, na manutenção da moral comum. Como já escrevi no primeiro volume de Kicola, o facto de vários dos nossos escritores cultivarem com denodo os logogrifos, as charadas e outros géneros (ou tipos, ou espécies) adivinhatórios, significava mais do que se supôs. Supunha-se uma prática provinciana, própria de um meio desfasado e menos culto, mas o que tínhamos aqui era uma comunidade intelectual de fronteira (também daí que lhe chame crioula), de quintal se preferirmos, ou de mercado e rua e família extensa, ligada biologicamente (quase sempre) e semioticamente (sempre) às oraturas bantos. As tais oraturas onde se mantinha, no século XIX, a função social e epistemológica das adivinhas e dos provérbios – por isso, também a função social, educativa e epistemológica das analogias. As charadas e logogrifos, práticas tipicamente rejeitadas pelos escritores nacionalistas do século seguinte (em geral racionalistas, marxistas, cientificistas), eram as mais próximas, estruturalmente, das oraturas. Elas exercitavam, através da escrita, de sinais gráficos e ortográficos, o mesmo tipo de estruturas e funcionalidades que as adivinhas e provérbios, com a diferença maior de remeterem geralmente para um mundo exótico ou globalizado (embora as houvesse com respostas que nomeavam lugares em Angola, por exemplo lugares).  

Nestes pontos coincidiram a força da reprodução na oralidade e a escola poética dominante na época entre nós. Não estranhem isto os leitores europeus, pois o que venho chamando de ultrarromantismo lusófono, apesar de não erigir essas práticas em cânones oficialmente estabelecidos, praticou muito charadas e logogrifos, fosse por provincianismo (caso de muitos) ou não (caso dos irmãos Castilho, por exemplo), bem como as contextualizações de que já falei (feitas através de dedicatórias e outros recursos funcionalmente parecidos). Infelizmente, isso não nos trouxe nenhuma vantagem para os dias subsequentes. Pedro Félix Machado percebeu talvez a fraqueza que vinha daí, pelo que os seus poemas sobre motivos locais tratam as personagens e os assuntos estereotipando-os, ajustando-os ao romance francófono globalizado pelo realismo e Balzac, assim nos facultando um contexto portátil, melhor dito, colando-os a tópicos universalizados, de maneira que em muitas comunidades do mundo pudessem os leitores identificar as situações e os tipos rapidamente. Além disso, não me consta que praticasse exercícios adivinhatórios. Em parte sai, dessa peneira parnasiana, uma formatação nova, mais límpida e racional (e sensual), que leva a que a sua poesia não se enquadre nos cânones observados pelos seus contemporâneos em Luanda.





[1] Despede-se, à partida para “os portos do sul” (“onde vai viver”), dos amigos de Luanda e do Alto Dande, “onde residiu por alguns anos” – cf. LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 11 (18-03-1899) 148.

[2] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 7 (18-02-1899) 95; 99 – caso ainda se trate da mesma pessoa. Pagou de emolumentos, no Lubango, nesse ano muito mais do que era costume ver-se nos tempos em que pagava em Luanda (2$400 réis, segundo o mesmo Boletim oficial, mas no n.º 41, de 14-10-1899, p. 105.

[3] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 1 (1-1-1865) 3.

[4] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 17 (22-04-1865) 76. Id. 21 (20-05-1865) 93. Id. 22 (27-05-1865) 2.

[5] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 25 (20-06-1874) 286.

[6] Muito presentes na série «dos meus nonsenses».



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